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Começou a valer, em janeiro deste ano a nova norma do Ministério de Agricultura Pecuária e Abastecimento (Mapa) que exige que medicamentos que contenham substâncias como cetamina, miltefosina e mefentermina devem ter notificações de receitas veterinárias e de aquisição por médico-veterinário emitidas via Sistema Integrado de Produtos e Estabelecimentos Agropecuários (Sipeagro).

A miltefosina é o princípio ativo do Milteforan, único produto autorizado no Brasil para tratamento da Leishmaniose Visceral Canina (LVC), e consta na lista das substâncias sujeitas a controle especial. A supervisão da comercialização da substância é feita pelo Mapa, por meio do registro no Sipeagro.

A  nova determinação do Mapa foi publicada na Instrução Normativa (IN) nº 55 de dezembro de 2018 e altera a IN nº 35, de 11 de setembro de 2017, que trata dos procedimentos para a comercialização das substâncias sujeitas a controle especial, quando destinadas ao uso veterinário e dos produtos de uso veterinário que as contenham.

O Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV) alerta que o médico-veterinário é o único profissional autorizado a prescrever a miltefosina, tratar e acompanhar o animal. O Conselho esclarece que o tratamento dos cães não se configura como uma medida de saúde pública para controle da doença e, portanto, trata-se única e exclusivamente de uma escolha do responsável pelo animal, de caráter individual.

Saiba mais sobre leishmaniose visceral (LV) na nota técnica elaborada pela Comissão Nacional de Saúde Pública do CFMV.

NOTA TÉCNICA SOBRE A LEISHMANIOSE VISCERAL

1. Sobre a doença

A leishmaniose visceral (LV), conhecida popularmente por calazar, é uma doença infecciosa que acomete os animais e o homem. Essa zoonose tem como agente etiológico nas Américas o protozoário Leishmania infantum, a mesma espécie que causa a doença na Europa. O principal reservatório do parasito em áreas urbanas no Brasil é o cão. O agente é transmitido aos seres humanos e aos animais por meio da picada de fêmeas infectadas do inseto denominado flebótomo. Esses insetos se infectam no momento do repasto sanguíneo em cães infectados.

 A LV humana é considerada pela Organização Mundial de Saúde como uma das principais doenças negligenciadas do planeta, tendo ainda um forte componente social, onde a incidência em populações de baixa renda e a faixa etária, com grande concentração em crianças, determinam um desafio à Saúde Pública mundial.

2. Epidemiologia

Na região das Américas, 96% dos casos dessa zoonose são reportados no Brasil, onde a enfermidade é endêmica e ocorre em todas as suas cinco macrorregiões. No ano de 2017, registraram-se casos em 23 dos 27 estados da Federação. Estão livres de casos autóctones da doença em humanos apenas os estados do Amazonas, Acre e Rondônia. Os estados com maior frequência de casos nesse ano foram: Maranhão, Pará, Ceará, Tocantins, Bahia, Piauí e Mato Grosso do Sul, que concentram 77% dos casos registrados no País.

Em 2017, foram registrados no Brasil 4.220 casos novos da doença e 316 óbitos. A doença ocorre em todas as faixas etárias, mas com incidência maior em crianças de 0 a 4 anos. Já a letalidade é maior em crianças menores de 1 ano e nos adultos maiores que 50 anos.

A ocorrência dos primeiros casos humanos autóctones da LV em uma localidade é precedida por uma transmissão sustentada em cães. Estudos realizados no Brasil demonstram uma associação positiva entre a ocorrência da leishmaniose visceral canina e humana.

A doença ocorre na população canina de 25 dos 27 estados da Federação. Apenas os estados do Amazonas e do Acre não possuem registro de casos autóctones de leishmaniose visceral canina (LVC).

A infecção de cães pela Leishmania infantum tem uma prevalência muito variável no Brasil e pode atingir até 60% dos animais de uma localidade em um município. Trata-se de uma doença letal para esses animais e de manejo complexo.

Diante desses fatores, é possível afirmar que a leishmaniose visceral canina é um dos principais problemas de saúde veterinária para os cães e com alta relevância para a saúde pública no Brasil.

3. Manifestações clínicas

3.1. Leishmaniose visceral humana: é uma doença de evolução relativamente lenta, mas que pode agudizar a depender das condições do paciente. Caracteriza-se por febre de longa duração, perda de peso, astenia, adinamia, hepatoesplenomegalia e anemia, dentre outras manifestações clínicas. Os casos mais graves apresentam icterícia, edema, infecções bacterianas secundárias e hemorragias, como a epistaxe e a gengivorragia. Quando não tratada, pode evoluir para o óbito em mais de 90% dos casos.

3.2. Leishmaniose visceral canina: os cães infectados por L. infantum podem permanecer sem sinais clínicos por um longo período de tempo e estima-se que aproximadamente 50% desses não apresentem sinais clínicos da doença. Nesses animais, a doença se manifesta de forma bastante variável e possui evolução lenta. Caracteriza-se pelos seguintes sinais clínicos: febre, perda de peso, astenia, adinamia, mucosas hipocoradas, alterações oftálmicas, linfadenopatia, onicogrifose, hepatoesplenomegalia e alterações cutâneas; tais como: lesões, alopecia localizada ou generalizada, descamação furfurácea, eczema, úlceras e hiperqueratose. Com menor frequência observa-se descarga nasal, diarreia, vômitos, desidratação e atrofia muscular. Na fase mais avançada da doença, é possível observar hemorragia intestinal, epistaxe, edema, paresia dos membros posteriores, inanição e morte, geralmente devido à insuficiência renal ou hepática.

4. Diagnóstico

4.1. Leishmaniose visceral humana: o diagnóstico baseia-se na epidemiologia (deslocamento para áreas com transmissão da doença em cães ou humanos), na clínica e no diagnóstico laboratorial específico, geralmente testes rápidos imunocromatográficos que detectam anticorpos específicos em pequenas amostras de sangue ou soro sanguíneo. O diagnóstico laboratorial específico também é realizado com relativa frequência por meio da visualização direta do parasito em aspirados de medula óssea.

4.2. Leishmaniose visceral canina: o diagnóstico segue a mesma lógica do que é feito para os humanos. A diferença é que nos cães o diagnóstico também é feito em animais assintomáticos, o que dificulta, porque os testes diagnósticos sorológicos possuem um desempenho inferior nesses animais. O diagnóstico laboratorial utilizado na Saúde Pública é sorológico e utiliza dois testes em série: o teste rápido imunocromatográfico em plataforma de duplo percurso (TR-DPP) na triagem e o Ensaio Imunoenzimático (Elisa) como confirmatório, ambos produzidos pelo laboratório público Bio-Manguinhos/Fiocruz. Na clínica veterinária, outros testes e técnicas são utilizados tais como: Elisa; Imunofluorescência Indireta (IFI); parasitológico direto de lesões de pele, punção de linfonodo ou de aspirado de medula óssea; reação de cadeia de polimerase (PCR); entre outros.

5. Ações de vigilância, prevenção e controle

As estratégias de Saúde Pública preconizadas pelo Ministério da Saúde para a vigilância, prevenção e controle da LV no Brasil são direcionadas ao homem, o ambiente, o vetor e o reservatório animal e devem ser realizadas de forma integrada e focalizadas nas áreas de maior risco.

Estão centradas no diagnóstico precoce e tratamento adequado dos casos humanos, vigilância e monitoramento canino com eutanásia de cães com diagnóstico sorológico ou parasitológico positivos, vigilância entomológica, saneamento ambiental, controle químico com inseticida de efeito residual e medidas preventivas direcionadas ao homem, ao vetor e ao cão. Essas ações estão detalhadas a seguir:

5.1. Diagnóstico oportuno e tratamento dos casos humanos: as Secretarias Municipais de Saúde, com o apoio das Secretarias de Estado de Saúde, têm a responsabilidade de organizar a rede básica de saúde para suspeitar, assistir, acompanhar e/ou encaminhar os pacientes com LV à referência hospitalar;

5.2. Vigilância e controle do reservatório animal: A identificação de animais infectados, tanto para fins de controle como para fins de definição de áreas com maior risco de transmissão da doença, é realizada por meio de inquéritos sorológicos censitários ou amostrais de cães. É importante que se busque a identificação oportuna dos animais infectados, mesmo assintomáticos. Os animais infectados devem ser submetidos à eutanásia pelos órgãos de saúde pública, observando a Resolução do CFMV nº 1.000, de 11 de maio de 2012. Do ponto de vista individual, como medida voltada para o bem-estar do animal, existe a possibilidade de os cães infectados serem submetidos a tratamento por um médico veterinário com medicamentos registrados no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) para esse fim.

5.3. Tratamento de cães infectados pela L. infantum: o tratamento da LVC no Brasil deve obedecer ao disposto na Portaria Interministerial nº 1.426/2008, dos Ministérios da Saúde e MAPA. Segundo a norma, o tratamento de cães só será permitido com medicamentos registrados no MAPA e que não sejam utilizados no tratamento de seres humanos com a doença. Atualmente, existe apenas um produto que atende a essas condições e que está sendo comercializado no Brasil, o Milteforan, cujo princípio ativo é a miltefosina. Ressalta-se que o tratamento dos cães não se configura como uma medida de saúde pública para controle da doença e, portanto, trata-se única e exclusivamente de uma escolha do responsável pelo animal, de caráter individual. Dessa forma, é imprescindível que se cumpra o protocolo de tratamento descrito na rotulagem do produto, respeitando-se a necessidade de reavaliação clínica, laboratorial e parasitológica periódica pelo médico veterinário, a necessidade de realização de novo ciclo de tratamento, quando indicado, e a recomendação de utilização de produtos para repelência do flebotomíneo, inseto transmissor do agente causal da LVC.

A Instrução Normativa nº 35, de 11 de setembro de 2017, estabelece os procedimentos para a comercialização das substâncias sujeitas a controle especial, quando destinadas ao uso veterinário e dos produtos de uso veterinário que as contenham. A miltefosina, princípio ativo do produto Milteforan, consta na lista das substâncias sujeitas a controle especial disposta na referida Instrução Normativa. O controle da comercialização do produto é feito pelo MAPA, por meio do registro no Sistema Integrado de Produtos e Estabelecimentos Agropecuários (Sipeagro), do MAPA. Nesse contexto, vale destacar que o médico veterinário é o único profissional autorizado a prescrever o medicamento, tratar e acompanhar o animal em tratamento.

Em uma nova determinação do Mapa, foi publicada por meio da Instrução Normativa (IN) nº 55 de dezembro de 2018 e altera a IN nº 35, de 11 de setembro de 2017, que trata dos procedimentos para a comercialização das substâncias sujeitas a controle especial, quando destinadas ao uso veterinário e dos produtos de uso veterinário que as contenham

5.4. Vigilância entomológica e controle químico do vetor: a vigilância entomológica consiste na captura sistemática ou pontual dos vetores da doença, os flebótomos, com intuito de: (a) auxiliar na identificação do local provável de infecção, (b) avaliar a receptividade das áreas para a transmissão da doença, (c) avaliar a sazonalidade do vetor e (d) auxiliar na definição de áreas com maior risco de transmissão para adoção das medidas de prevenção e controle. Já o controle químico do vetor resume-se na aplicação periódica de inseticidas de ação residual no extra, peri e intradomicílio dos imóveis das áreas com maior risco de transmissão, conforme definições do Ministério da Saúde. Essa ação tem o intuito de reduzir a população dos insetos vetores da LV e, consequentemente, reduzir o contato desses com os seres humanos.

5.5. Educação em saúde: as atividades de educação em saúde também devem estar inseridas em todos os serviços que desenvolvem as ações de controle da LV, requerendo o envolvimento efetivo das equipes multiprofissionais e multi-institucionais com vistas ao trabalho articulado nas diferentes unidades de prestação de serviços, por meio de: divulgação à população sobre a ocorrência da LV na região, alertando sobre os sinais clínicos e os serviços para o diagnóstico e tratamento; capacitação das equipes, englobando conhecimento técnico, aspectos psicológicos e prática profissional em relação à doença e aos doentes; adoção de medidas preventivas considerando o conhecimento da doença, atitudes e práticas da população, relacionada às condições de vida e trabalho das pessoas; estabelecimento de relação dinâmica entre o conhecimento do profissional e a vivência dos diferentes estratos sociais através da compreensão global do processo saúde/doença, no qual intervêm fatores sociais, ambientais, econômicos, políticos e culturais.

5.6. Medidas de proteção individual: uso de mosquiteiro com malha fina, telagem de portas e janelas, uso de repelentes; não exposição em horários de atividade do vetor (crepúsculo  noite) em ambientes onde habitualmente pode ser encontrado;

5.7. Saneamento ambiental: manejo ambiental, por meio da limpeza de quintais, terrenos e praças públicas, a fim de alterar as condições do meio que propiciem o estabelecimento de criadouros de formas imaturas do vetor. Medidas básicas como limpeza urbana, eliminação e destino adequado dos resíduos sólidos orgânicos, eliminação de fonte de umidade, não permanência de animais domésticos dentro de casa, entre outras, contribuem para evitar ou reduzir a proliferação do vetor.

5.8. Doação de cães: em áreas com transmissão de LV humana ou canina é recomendado que, previamente à doação de cães, seja realizado o exame sorológico canino. Caso o resultado seja sororreagente, medidas de vigilância e controle deverão ser adotadas, conforme preconizado pelo Ministério da Saúde.

5.9. Vacinas: Não existem vacinas contra a LV para humanos. Atualmente existe uma vacina antileishmaniose visceral para cães registrada e comercializada no Brasil. Segundo o Ministério da Saúde e o MAPA, o produto é o único até o momento que atendeu às exigências da Instrução Normativa Interministerial n° 31 de 09 de julho de 2007. Todavia, não há constatação de sua efetividade e custoefetividade para o controle da leishmaniose visceral canina e humana em programas de saúde pública. Dessa forma, o seu uso está restrito à proteção individual dos cães e não como uma ferramenta de Saúde Pública. Destaca-se ainda que; conforme disposto na Instrução Normativa interministerial nº 31, de 9 de julho de 2007, Art. 6º,§ 7º; esse imunobiológico está indicado somente para animais assintomáticos com resultados sorológicos não reagentes para leishmanioses visceral, e portanto, não deve ser utilizado para o tratamento de animais doentes. Cabe destacar que a vacina não é o único instrumento de prevenção individual da leishmaniose visceral canina (LVC) e que outras medidas devem ser adotadas, conforme normatização do Ministério da Saúde.

5.10. Uso de telas em canis individuais ou coletivos: os canis de residências e, principalmente, os canis de pet shops, clínicas veterinárias, abrigo de animais, hospitais veterinários e os que estão sob a administração pública devem obrigatoriamente utilizar telas do tipo malha fina, com objetivo de evitar a entrada de flebotomíneos e, consequentemente, impedir o contato desses insetos com os cães;

5.11. Coleiras impregnadas com deltametrina a 4%: São produtos que possuem o efeito repelente e inseticida de flebótomos. Estudo financiado pelo Ministério da Saúde demonstrou que o encoleiramento de cães em massa com essa ferramenta foi efetivo e custo-efetivo na redução da prevalência e incidência da infecção de cães pela L. infantum em áreas com alta transmissão da doença no Brasil. O estudo demonstrou também a efetividade dessa estratégia na redução da incidência da doença em humanos. Nesse contexto, o Ministério da Saúde decidiu por incorporar essa ferramenta para o uso no Sistema Único de Saúde a partir do ano de 2019, visando ao controle da LV em cães e humanos em municípios com alta transmissão.

5.12. Outros produtos repelentes de flebotomíneos: Além das coleiras impregnadas com deltametrina a 4%, existem outros produtos comercializados no Brasil que possuem o efeito repelente de flebotomíneos. No entanto, não existem estudos que comprovem suas efetividades e custo-efetividades na redução da prevalência e incidência da infecção de cães pela L. infantum e da doença em humanos no Brasil. Nesse contexto, esses produtos estão recomendados atualmente apenas como medida de proteção individual para os cães contra picadas de flebotomíneos, e não como uma medida de Saúde Pública.

6. Considerações Finais

Considerando que a LV é uma antropozoonose de transmissão vetorial urbana, que envolve uma complexidade de fatores no seu ciclo de transmissão, considera-se que o seu controle é um grande desafio Brasil. As tecnologias em saúde atualmente existentes não são suficientemente efetivas para um controle avançado dessa enfermidade.

Nesse contexto, o enfrentamento desse grave problema de saúde pública carece de esforços intersetoriais e interdisciplinares das áreas da saúde animal, humana e do meio ambiente.

Dessa forma, salienta-se a responsabilidade do médico veterinário para o avanço nas estratégias de vigilância e controle da doença no País. O protagonismo desses profissionais, sejam eles clínicos, patologistas, professores, pesquisadores, sanitaristas, etc., é decisivo para uma abordagem efetiva no controle da LV.

Diante desse cenário, é primordial que o Sistema CFMV/CRMVs promova ações e discussões constantes e periódicas com os médicos veterinários sobre a vigilância e controle da LV.

 

Comissão Nacional de Saúde Pública Veterinária

Conselho Federal de Medicina Veterinária

 

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